terça-feira, 20 de novembro de 2007

Final da Primavera

Ainda deitada, olhou o quarto quieto. Cômoda, criado mudo e armário, todos combinando com a grande cama de madeira maciça. Algumas fotos na parede marrom claro. O grande espelho no canto. Seu quarto tinha um aspecto formal, com uma decoração sóbria quebrada apenas pelo confortável puff junto à sua estante de livros. O carpete creme lhe conferia um ar aconchegante. Algo, porém, lhe parecia estranho naquela manhã. Tinha uma sensação de ver tudo fora de foco e com um estranho tom alaranjado. Sabia que a mudança de posição do sol no verão alterava bastante a iluminação e as cores que seu quarto assumia. Olhou o feixe de luz que entrava pela cortina blackout entreaberta. Esse ano passou muito rápido, pensou. Ia assim despertando, quase sem notar a levíssima dor no estômago, quando então se lembrou da noite anterior e da discussão. Virou-se para o outro lado para ficar frente a frente com ele. Ele tinha os olhos fechados, mas não parecia dormir. Estava com um semblante sério, quase fechado. De fato, ao perceber a movimentação, abriu os olhos e os dois se olharam.

Ela tinha certeza que a noite anterior seria um divisor de águas naqueles três ou quatro meses em que estavam juntos. Há mais de uma semana ela andava nervosa, ansiosa. O que a deixava ainda mais inquieta era o fato que ele parecia não se importar ou mesmo perceber. Tanto que pareceu surpreso quando ela finalmente perguntou, enquanto comiam a lasanha pré-cozida, o que você quer? Com um sorriso sem graça, ele disse que queria terminar a lasanha. É sério, o que você quer comigo? Disparou. Falou com uma convicção tão grande que ele não se deu conta que ela logo se arrependeu da pergunta direta. Ela temia que ele entrasse num discurso que ela já tinha ouvido sobre cobranças, compromissos, deixar o que está bom do jeito que está. Mas ele respirou fundo, desviou o olhar e não disse nada. Um minuto, dois, dez. Ela não sabia quanto tempo tinha o encarado esperando a resposta. Você não vai responder? Perguntou impaciente. Ele pareceu assustar-se com a pergunta áspera. É para responder mesmo? Indagou colocando novamente o seu sorriso amarelo. Ela perdeu a paciência de vez e partir daí entraram numa discussão sem sentido. Ela chamando-o de cínico e ele insistindo em dizer que não sabia o que ela queria ouvir. Até que ela se levantou e disse que ia dormir. Ainda o ouviu perguntar: você quer que eu vá para minha casa? A pergunta foi como uma flecha. Ela quis dizer que não, que não suportaria passar a noite sozinha, que preferia que ele ficasse e a abraçasse. Faça o que você achar melhor.

Agora, de frente para ele, sentia novamente o coração disparado. Tinha a sensação de não ter dormido nada naquela noite e realmente não lembrava de nenhum sonho que comprovasse que havia dormido algumas horas. Agora, olhando-o nos olhos, ainda esperava uma resposta, mas não quis perguntar de novo. Achou que entrariam novamente naquela discussão e definitivamente não queria aquilo novamente. Mas para sua surpresa, o semblante sério se desfez e ele abriu um sorriso diferente da noite anterior. Parecia sincero. Me abrace. O pedido dele trouxe uma sensação de paz e ela achou que tudo se resolveria. Sentiu o abraço dele como uma fortaleza a sua volta, uma sensação de segurança que ela não se lembrava de ter sentido antes. De repente seu medo se dissipou como se nunca tivesse existido. Ia lhe dizer que era só isso que ele precisava ter feito ontem e sempre que ela se sentisse insegura por qualquer razão, mas não teve tempo. Acordou de repente e, ainda deitada, olhou o quarto quieto. Nada parecia diferente, embora pouco se pudesse ver com as cortinas fechadas. Por alguns instantes tentou se lembrar se ele tinha ficado depois da discussão ou não. Mas virou-se para o outro lado para ficar frente a frente com ele. Ele tinha os olhos fechados e dormia profundamente. Estava com um semblante sereno, leve. Não teve nenhuma reação, por mais que ela fizesse força para balançar a cama. Será que ele ainda demoraria a acordar, pensou.

6 comentários:

Unknown disse...

Já falei...quando a gente vai filmar isso?? E olha que eu ainda nem fiz o curso de cinema...ahahaa

acho du caralho as tuas narrativas giga.

parabéns

Laura Tonhá disse...

Tico, adorei este texto... como termina? o q acontece? nos, mulheres, ja vimos este filme tantas vezes, rsrsrsrs... fico impressionada com a sua percepcao aobre alguns "feelings" tipicamente femininos. Tudo de bom!! Bjs!!

Graça disse...

...não eh q "a pessoa" está deixando aflorar o escritor que certamente sempre existiu dentro de si?! Vá em frente!!!beijão

Unknown disse...

porra B4! continuop me impressionando com sua capacidade de colocar as coisas em palavras! ótimas leituras!

b4 disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
b4 disse...

Valeu pelos comentários, gente!! Eles dão um incentivo fora de série!!! Valeu mesmo!!

Lau: ainda não sei como termina. Pode ser de várias, várias formas diferentes, depende da intensidade do sonho na Primavera, de quem são "as pessoas" e do que elas querem... Fica no ar (pelo menos por enquanto...).
Beijo!