quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Eu te amo

Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir

Ah, se ao te conhecer
Dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir

Se nós nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu

Como, se na desordem do armário embutido
Teu paletó enlaça o meu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu

Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios ainda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair

Não, acho que estás só fazendo de conta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir.

(Chico Buarque e Tom Jobim)


Olhou para a cama vazia. Sentiu o peito apertado. Sentiu a cabeça pesada. Sentiu uma lágrima descer pelo rosto. Dois travesseiros, apesar de só precisar de um. Quando se deitava, ainda sentia o cheiro dele nos lençóis. Ficou parada, na porta do quarto, por alguns minutos, mas pareceu uma eternidade. Sete anos, pensou. E se sentia boba por lembrar de quando se conheceram.

Tinha que terminar um trabalho de Botânica, mas as amigas insistiram. Não conseguia recusar o convite delas naquela época. Sua vida era bem agitada, gostava de sair e tomar tequila no balcão com sua turma. Mas no fundo ela estava cansada de tudo aquilo quando o conheceu. Estava solteira havia quase quatro anos e sentia-se sozinha apesar de muitas vezes voltar para casa acompanhada. Naquela noite estava no balcão tentado pedir uma cerveja já havia algum tempo, quando ouviu alguém falando: amigo, atenda à menina aqui! Sentiu-se estremecer com a voz grave, séria. Quando se virou, sentiu-se hipnotizada por um sorriso simples e sincero. De nada, disse ele sem modéstia, para quebrar o gelo, quando o garçom deixou a garrafa na frente deles. Ela apenas sorriu de volta, olhando-o nos olhos. Ficaram o resto da noite naquele mesmo lugar, apoiados no balcão. Falaram sobre flores e pássaros. Falaram sobre futebol, política e religião, sobre carnavais passados, sobre olhos e olhares, sobre sol e nuvens, noite e escuridão, sobre amores, esperanças e desejos, sobre medo, fúria e raiva. Falaram sobre pudor e tesão, lucidez e insanidade, sobre Vênus e Marte. De vez em quando ele pedia: amigo, atenda à menina aqui!

Ainda era recente. Ela havia se acostumado a encontrá-lo na volta do trabalho. Marcavam na estação do metrô ou na galeria perto do apartamento. Comiam alguma coisa, conversavam, riam, discutiam, trocavam carícias. Ele a ouvia, aconselhava, reclamava dela e lhe cobria de elogios. Ele perguntava sua opinião, dizia que a amava e olhava-a nos olhos. Ela se sentia segura com ele. Mas enxugou as lágrimas que haviam se multiplicado em seu rosto e finalmente entrou no quarto. Sentou-se na cama, tirou a sandália e procurou espaço embaixo das gavetas do armário. O armário superlotado contrastava com a sensação de vazio que a preenchia, como um nó subindo por sua garganta. E ela só conseguia ver as coisas dele no emaranhado de roupas e sapatos. Respirou fundo e soltou um ar soluçado. Sentia uma agonia, um desespero, uma inquietude. Viu as roupas dele penduradas nos cabides, escondendo as suas. Virou-se e se caiu deitada na cama. Ainda era muito recente. Levantou o rosto, apoiou nos braços cruzados e, no criado mudo, olhou para a foto de sua formatura. Voltou no tempo novamente.

Seu apartamento estava cheio com seus primos e primas. Estava tensa e ansiosa com a com a presença dos pais, tios e avós perguntando sobre sua vida, sobre as entrevistas para emprego e seu futuro. Havia brigado com ele na véspera, na colação de grau, e se sentiu mal durante quase toda a festa. Eles estavam sentados na mesa, sozinhos, incomodados com a situação e orgulhosos demais para conversarem. Ela percebeu o movimento dele enquanto olhava distraída para a pista de dança. Quando se virou o viu fazendo sinal pro garçom: amigo, atenda à menina aqui! Ela respondeu mais uma vez ao seu sorriso e o beijou. Mais tarde, voltando pra casa, ela se surpreendeu quando ele parou o carro perto da biblioteca e passou a mão em sua coxa. Ela sentiu um arrepio na espinha. Saíram do carro, deram as mãos e caminharam até o fundo do prédio. Ele se encostou na parede e perguntou: lembra? Como se fosse ontem, ela disse. Fizeram amor no mesmo lugar que tinham feito pela primeira vez: em pé, com as pernas entrelaçadas, apoiados na quina da parede escura, atrás da biblioteca da universidade. Sentiu que jamais esqueceria aquela noite.

Quis parar de chorar. Levantou-se da cama e arrastou-se para o banho. A enxurrada do chuveiro esconderia suas lágrimas.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Carta de Amor ao Mar...

Carta de Amor ao Mar

A ti que serenamente moras perto, calmo como revolto, imenso quase infinito, simplesmente a ti me dirijo muito cordialmente, mar! A noite tem estrelas luzentes, a brisa me devolve a vontade de mergulhar no escuro…porém sonhei contigo, bateu uma saudade e acordei alegre, nostálgico cansado...pedi um copo de água…na verdade, é ainda noite ou madrugada. São 01:36 horas, a noite já não é nenhum bebé - vai longa pela madrugada adentro, e já começa o novo dia, pensei em ti...e pus-me a escrever estes retalhos em forma de frases, sinceramente, pouco ou nada tenho a dizer, simplesmente, Olá, mar!

Olá? Como estás e como te corre a vida por ai?Beijinhos e abraços fofos e ternos, e lamento não ter podido visitar-te atirando-me sobre as ondas, flutuar e deleitar-me com seu carinho, como era - de resto - meu desejo primacial. Tu sabes, sei! Enfim, são coisas da vida, pois é, a noite e o dia não acontecem ou ocorrerem ao mesmo tempo…que remédio (…risos e lágrimas…).

Saúde abundante e chuvas de bênçãos inundem o teu alegre viver, para que isso converta em energia geradora e propulsora de sucessos, e estes se sagrem em felicidade, pois bem mereces! E que assim seja por todo o sempre!

Quantas saudades do teu sorriso arrebatador! Quantas? Acho que não sei mais contar…perdi-me entre os dígitos árabes…e nem os romanos tão me ajudam…alfa e ómega…sei lá…quantos!!!

Quando o sol se punha no horizonte, resvalava a luz lentamente, de repente, e ao levantar o olhar, vejo atónito um quadro imenso lindo que se perde na extensão do meu olhar, uma realidade quase surreal amarela avermelhada sobre um azul escuro aleatoriamente ondulante, percorre-me estranhamente rasgos ou visões tão instantâneas quanto fugazes…era o entardecer.

Que lindo mar, ó que lindo lugar, pensei de mim para comigo - o amor acontece! E enquanto me atinha em pensamentos se fez cada vez mais escuro e a equipe de pássaros já não mais abrilhantava os ares da praia com encantadoras coreografias elípticas e por vezes cónicas num sobe e deixe como que uma divindade qualquer - Deus do Entardecer - lhes tivesse convidado para encerrar o dia em apoteose.

Aconteceu a noite, mar! Na minha terra - planalto central de Angola, Afrika - diz-se que o sol quando se põe é porque terá cumprido o dever de iluminar os vivos de dia, e durante a noite, irá visitar os nossos entes queridos há muito partidos para eternidade, aqueles que jazem na santa paz, então a noite o nosso amigo Sol, no meu caso, em particular, durante a noite está como meu falecido pai, o meu saudosos manos Morais, Ezequiel, tios e avós e bisavós e numa palavra única os nossos Ancestrais…agradeço profundamente ao sol por tão gentil gesto.

Ó Noite, o sol partiu, - foi…silêncio e muito respeito pois os nossos lá no além se encontram a desfrutar desta mesma luz, que nós até pouco tivemos. Assim se pensa ainda, em tempos hodiernos, na minha terra profunda…nas Mulembas (árvores gigantesca cuja sombra serve de uma espécie de Sala de Estar, ai os aldeões contam estórias, falamo dos mitos da terra, das lendas, da saudades das saudades…falam do viver do passado, presente e do futuro…falam que falam… ), bom não me perdi, eu ai nas Mulembas dos meus sacrossantos antanhos. ... ó mar!

Desta vez estou a avisar-te, cresci. Por terras Lusas muito se diz que os melhores vinhos são os que já há muito envelhecem nas adegadas…será verdade? - é, sim. Ora, dizer que sou um vinho maduro dever ter muita graça e piada…! Beijos deste vinho maduro (tinto ou branco) que te escreve!Já falei-te das várzeas dos meus antanhos, agora falo-te de mim, este coração docemente quente em frenética palpitação…saudades do nada…saudades das mil saudades…ou afectos e respectivos efeitos que abalam o meu eu, como um vulcão que se irrompe das profundezas dos mantos, mandando muitas lava em brasa, luminosa como sol do meio dia…dizendo, amo-te simplesmente, mar! As ilhas do mar são produtos dos vulcões, e eu sou também produto da junção de dois corações…terá algo haver água do rios com as das chuvas, mar?!? - pense.

O tempo passou, lembra-te que o vinho ficou mais envelhecido…portanto valorizou-se. Mas falando outra vez do tempo, aqui por estas amigas paragens do sul da Europa, tem estado muito agradável, o sol brilha alegremente, os corpos dispensam as vestes do Inverno e os jardins continuam floridos numa graciosidade esplendorosa, o verão sugere muitas actividades… por exemplo um mergulho, … falando nisso…ainda não fui a praia pois não é muito a minha praia, adoro muito mais uma tarde num lindo jardim a ler e sentir-me deveras encantado pelas hilariantes sinfonias dos passarinhos...uma música autentica - genuína - da natureza que não se faz de partituras, nem é em Mi Menor ou feitas de adágios ou arpegios, ela flúi normalmente preenchendo as pausas do silêncio... eu escuto a voz do silêncio e viajo no tempo e no espaço, é Sublime! Na vida que vivo tento dar sentido as coisas simples, ao meu querer indefectível, e deixar fluir ideias suavemente como um rio pacato que corre em busca de uma foz algures na confluência entre o mar e este último.

A vida é uma trajectória como rio que vejo aos meus olhos tesos de espanto, haka! Talhou seu rumo entre rochas, abriu esculpindo falésias por entre grandes e íngremes escarpas, por vezes, até parece estagnar, mas firmemente irrompe com tudo e segue a diante, ora a montante, jaz sua nascente, uma efémera linha de água ou simplesmente umas gotas de nada, que brotam por entre as fracturas da imponente montanha, ao crescer agigantou-se e tem agora um caudal colossal e uma corrente inexpugnável, hoje já ninguém ousa atravessa-lo à vau…assim somos nós, guerreiros sem armas, lutadores incansáveis, filhos que vivem longe do doce colo e calor maternos, depois de anos a fio de caminhadas, Eis-nos vencendo incertezas e moldando vontades firmes e hirtos, com saúde, cá estamos!

Mar, voltarei a escrever-te com mais novidades emparelhadas na noite de lua cheia, na maré baixa, pois assim o correio irá com certeza ao destinatário, o vinho se despede, com muito carinho e afectuosamente,….Eu, simplesmente.

Wene Sóckratikus
Porto/Portugal, aos 03 Agosto 2007.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Cecília

O trânsito estava parado e ela acabava de ouvir no rádio que houvera um acidente grave. Pela descrição da repórter e pela ambulância que a havia ultrapassado há mais ou menos 20 minutos, desconfiou que fosse à sua frente e que provavelmente iria permanecer parada por um bom tempo ainda. Beatriz olhou o relógio do painel do carro e sentiu fome. Indagou-se se estava realmente com fome ou se estava condicionada a jantar às 19:30. De qualquer forma, sentia o estômago vazio e começou a pensar que chegaria em casa e encontraria uma panela no fogão com uma sopa de legumes ou metade de uma lasanha no forno, no velho pirex de vidro com manchas de queijo queimado. Lembrou-se que suas tentativas de limpar o pirex eram cansativas e frustrantes, deixando-a com a impressão que a mancha aumentava cada vez mais. Sentiu um pouco de raiva por ter que lavar a louça de todos, mas ela era sempre a última a chegar e esta era realmente uma tarefa mais indicada para ela. O problema é que seu irmão tinha uma forte tendência a “esquecer” de passear com o cachorro e não era raro ela ter que dar uma volta no quarteirão levando o labrador pela coleira depois de limpar a cozinha. Ela sempre reclamava com a mãe, sentia-se injustiçada por seu irmão não cumprir com suas responsabilidades e ela ter que assumir uma tarefa que não era dela. Lembrou das discussões, que sempre terminava com uma porta batendo e uma noite mal dormida. Ela sentia-se mal em discutir com sua mãe. Desde a separação de seus pais as cosias estavam mais difíceis em sua casa, mas, desde aquela rápida “reunião familiar” em que dividiram as tarefas, ela, sua mãe e irmão não tinham parado para conversar a respeito. Não sentia-se forte o bastante para puxar este assunto com sua mãe. Além do mais, temia que sua mãe entrasse novamente numa crise de choro. Sentiu raiva de seu pai, mas sabia que ele tinha feito a coisa certa ao pedir o divórcio. Beatriz respirou fundo e enxugou a lágrima que desceu pelo seu rosto. Ela também estava cansada das brigas constantes que eles sempre tinham depois do jantar e se lembrou que, antes de sua irmã mais velha sair de casa, as coisas pareciam ser mais calmas. Mas ela era uma menina naquela época. Lembrou-se de seu pai tocando violão e sua irmã cantando junto dele. Ela adorava a voz de Cecília. Lembrou-se de sua irmã aumentando o volume do som do quarto que dividiam, cantando e dançando com ela em cima da cama. Lembrou das brincadeiras que faziam quando ela era bem pequena, os cinco juntos. Pronto, lá estava ela novamente lembrando-se de sua infância. Era incrível como seus pensamentos a levavam às suas memórias naquele apartamento na Alameda dos Bosques. Se indagou o que a fez lembrar novamente daquela época e fez um pequeno esforço para refazer os caminhos de seu pensamento. Foi se lembrando: ela pulando em cima da cama com a irmã, ela cantando junto de seu pai, sua irmã com as malas prontas esperando a carona da avó, as brigas de seus pais, a separação, sua mãe chorando, uma porta se batendo, as discussões com sua mãe por causa do irmão, caminhar o cachorro, limpar a cozinha, a janta no fogão... Voltou os olhos para o relógio de relance, como saindo de um transe, e depois para os carros ainda parados à sua frente. Estava definitivamente com fome. Encostou a cabeça no encosto do banco e respirou fundo.