Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir
Ah, se ao te conhecer
Dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir
Se nós nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir
Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu
Como, se na desordem do armário embutido
Teu paletó enlaça o meu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu
Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios ainda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair
Não, acho que estás só fazendo de conta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir.
(Chico Buarque e Tom Jobim)
Olhou para a cama vazia. Sentiu o peito apertado. Sentiu a cabeça pesada. Sentiu uma lágrima descer pelo rosto. Dois travesseiros, apesar de só precisar de um. Quando se deitava, ainda sentia o cheiro dele nos lençóis. Ficou parada, na porta do quarto, por alguns minutos, mas pareceu uma eternidade. Sete anos, pensou. E se sentia boba por lembrar de quando se conheceram.
Tinha que terminar um trabalho de Botânica, mas as amigas insistiram. Não conseguia recusar o convite delas naquela época. Sua vida era bem agitada, gostava de sair e tomar tequila no balcão com sua turma. Mas no fundo ela estava cansada de tudo aquilo quando o conheceu. Estava solteira havia quase quatro anos e sentia-se sozinha apesar de muitas vezes voltar para casa acompanhada. Naquela noite estava no balcão tentado pedir uma cerveja já havia algum tempo, quando ouviu alguém falando: amigo, atenda à menina aqui! Sentiu-se estremecer com a voz grave, séria. Quando se virou, sentiu-se hipnotizada por um sorriso simples e sincero. De nada, disse ele sem modéstia, para quebrar o gelo, quando o garçom deixou a garrafa na frente deles. Ela apenas sorriu de volta, olhando-o nos olhos. Ficaram o resto da noite naquele mesmo lugar, apoiados no balcão. Falaram sobre flores e pássaros. Falaram sobre futebol, política e religião, sobre carnavais passados, sobre olhos e olhares, sobre sol e nuvens, noite e escuridão, sobre amores, esperanças e desejos, sobre medo, fúria e raiva. Falaram sobre pudor e tesão, lucidez e insanidade, sobre Vênus e Marte. De vez em quando ele pedia: amigo, atenda à menina aqui!
Ainda era recente. Ela havia se acostumado a encontrá-lo na volta do trabalho. Marcavam na estação do metrô ou na galeria perto do apartamento. Comiam alguma coisa, conversavam, riam, discutiam, trocavam carícias. Ele a ouvia, aconselhava, reclamava dela e lhe cobria de elogios. Ele perguntava sua opinião, dizia que a amava e olhava-a nos olhos. Ela se sentia segura com ele. Mas enxugou as lágrimas que haviam se multiplicado em seu rosto e finalmente entrou no quarto. Sentou-se na cama, tirou a sandália e procurou espaço embaixo das gavetas do armário. O armário superlotado contrastava com a sensação de vazio que a preenchia, como um nó subindo por sua garganta. E ela só conseguia ver as coisas dele no emaranhado de roupas e sapatos. Respirou fundo e soltou um ar soluçado. Sentia uma agonia, um desespero, uma inquietude. Viu as roupas dele penduradas nos cabides, escondendo as suas. Virou-se e se caiu deitada na cama. Ainda era muito recente. Levantou o rosto, apoiou nos braços cruzados e, no criado mudo, olhou para a foto de sua formatura. Voltou no tempo novamente.
Seu apartamento estava cheio com seus primos e primas. Estava tensa e ansiosa com a com a presença dos pais, tios e avós perguntando sobre sua vida, sobre as entrevistas para emprego e seu futuro. Havia brigado com ele na véspera, na colação de grau, e se sentiu mal durante quase toda a festa. Eles estavam sentados na mesa, sozinhos, incomodados com a situação e orgulhosos demais para conversarem. Ela percebeu o movimento dele enquanto olhava distraída para a pista de dança. Quando se virou o viu fazendo sinal pro garçom: amigo, atenda à menina aqui! Ela respondeu mais uma vez ao seu sorriso e o beijou. Mais tarde, voltando pra casa, ela se surpreendeu quando ele parou o carro perto da biblioteca e passou a mão em sua coxa. Ela sentiu um arrepio na espinha. Saíram do carro, deram as mãos e caminharam até o fundo do prédio. Ele se encostou na parede e perguntou: lembra? Como se fosse ontem, ela disse. Fizeram amor no mesmo lugar que tinham feito pela primeira vez: em pé, com as pernas entrelaçadas, apoiados na quina da parede escura, atrás da biblioteca da universidade. Sentiu que jamais esqueceria aquela noite.
Quis parar de chorar. Levantou-se da cama e arrastou-se para o banho. A enxurrada do chuveiro esconderia suas lágrimas.
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008
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